segunda-feira, julho 23, 2012

A falácia da utopia


Rodrigo Constantino, para a revista VOTO

Poucas coisas são tão perigosas para a liberdade como uma mentalidade utópica. Os utópicos não se caracterizam simplesmente por erros pontuais de raciocínio lógico; eles adotam todo um método mental que de uma forma misteriosa é indiferente à verdade. De certa forma, a utopia pode ser um substituto laico da religião para aqueles inconformados e incapazes de lidar com as limitações da vida imperfeita.

Em seu livro The Uses of Pessimism, Roger Scruton dedica um capítulo para derrubar a falácia da utopia e mostrar como ela está a um passo do totalitarismo. Parte da explicação para movimentos utópicos seria, segundo o autor, um resíduo de heresia religiosa em um mundo sem religião, ou seja, a expectativa de criar um paraíso terrestre, colocando um fim nas imperfeições do mundo.

Os utópicos podem ignorar a aprendizagem com experiências passadas e até o bom senso, abraçando um projeto absurdo e impraticável. Nada pode refutar uma utopia, e nisso reside seu fascínio. As milhões de vidas perdidas ou escravizadas nas tentativas de tornar a utopia realidade não negam a utopia; apenas provam que maquinações perversas ficaram no caminho como obstáculos indesejados. É preciso redobrar o esforço.

É exatamente com esta postura que socialistas podem ignorar todas as desgraças causadas em nome de sua utopia. A União Soviética nunca foi comunista, eles alegam. Era um “socialismo real”, ou pior, um “capitalismo de estado” (assim conseguem jogar a culpa para o lado do capitalismo). O fim, sendo inviável, jamais chega. A utopia está, desta maneira, totalmente imune a qualquer tipo de refutação.

Utopias são visões de um futuro em que todos os conflitos e problemas da vida humana são resolvidos completamente. As pessoas viverão em harmonia, felizes. O desejo dos utópicos é por uma “solução final”, não para alguns problemas, mas para todos os problemas. Tudo aquilo que cria conflitos e tensões será eliminado. A raça será pura, não haverá mais classes ou hierarquia, o mundo será um lugar de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Cada utopia tem sua versão.

Mas o ponto importante das utopias, como frisa Scruton, é o fato de que elas não podem se concretizar. No fundo, talvez de forma subliminar, os utópicos sabem disso, e por isso se negam a descrever em maiores detalhes e de forma crítica o que exatamente eles têm em mente. As utopias acabam empacotadas de forma vaga, ainda que com a embalagem “científica”.

Karl Marx, que criticava o socialismo utópico e considerava o seu científico, jamais foi capaz de entrar em detalhes sobre o funcionamento de seu modelo. Todos poderiam atender a seus múltiplos desejos, caçar pela manhã, pescar na parte da tarde e até virar crítico literário de noite, pois não haveria mais divisão de trabalho nem propriedade privada. Como exatamente fazer isso sem tais mecanismos não vem ao caso. Quem produz as ferramentas necessárias para a caça e a pesca? Marx não responde. Talvez elas brotassem do solo.

Esta meta inalcançável serve como poderosa arma para negar tudo aquilo que é real. Se eu defendo algo que não pode existir, que jamais existiu e que sequer pode ser refutado, então coloco-me em uma Torre de Marfim e, do alto de minha utopia, passo a atirar em todos os modelos atuais. Qualquer defeito, qualquer problema existente passa a ser indício de que o modelo vigente fracassou. A utopia serve como uma condenação abstrata de tudo que nos cerca, e justifica a postura intransigente e violenta do utópico.

O ideal dos utópicos jamais é refutado, jamais é testado. Ele permanece para sempre como um horizonte distante, imaculado, oferecendo um julgamento rigoroso de tudo que existe, como um sol que não pode ser observado mas que cria uma sombra em tudo aquilo que ele lança seu brilho. E as sombras são os inimigos da pureza do sol, que precisam ser eliminados do caminho para que venha a luz.

Utópicos costumam aderir facilmente às teorias conspiratórias e simplistas, que dividem de forma maniqueísta o mundo entre bom e mau. Todos aqueles que recusam a utopia são seus inimigos. Eles não podem discordar por convicção; devem ser traidores, opressores ou, na melhor das hipóteses, alienados.

Foi assim que os jacobinos encararam todos que criticavam a Revolução Francesa, como “inimigos do povo”. Hugo Chávez, em busca de seu “socialismo do século 21”, adota a mesma tática.

Os inimigos variam de acordo com a utopia. Para os nazistas eram os judeus; para os comunistas, os burgueses; para os anarquistas, os políticos. O importante é ter um bode expiatório, de preferência bem definido, aquele que impede a realização da utopia. O crime, a violência e a destruição são justificáveis como meios para um sonho tão puro e lindo como o utópico.

A revolta e o desejo de vingança contra a realidade alimentam a utopia revolucionária. Esta sede destrutiva costuma derivar de um profundo ressentimento direcionado àqueles que, de alguma forma, conseguem contemporizar com as restrições da vida. O caminho do totalitarismo está aberto se os utópicos conseguem chegar ao poder.  

8 comentários:

Anônimo disse...

Magnífico artigo!
Parabéns, Rodrigo!
Você se supera cada vez mais.

Ivan disse...

Texto interessante...

Mas o problema que vejo é que não podemos cair no extremo oposto, qual seja: o "pessimismo extremo".
Embora eu concorde com a idéia de que a "natureza humana" está longe de ser algo intrinsecamente bom, como pensava Rousseau, o fato é que a "naturalização" das mazelas e injustiças pode conduzir à estagnação do progresso humano.

Em outras palavras, se todos aceitassem como "natural" e "irremediável" coisas como o absolutismo ou a escravidão (tidas como absolutamente "normais" no passado, embora hoje abominados) não teríamos evoluído o pensamento humano para a democracia e a liberdade (valores que são cultuados no presente).

O grande problema é encontrar o meio termo entre a "revolução progressista" (que pode conduzir a totalitarismos) e o conformismo pessimista...

Anônimo disse...

Socialismo é? Quando começou a falar de utopia achei que ia criticar o pessoal do anarco capitalismo

Anônimo disse...

Concordo com e aplaudo todo o texto, e o que me APAVORA E ENTRISTECE é que a única saída para nosso país afora milênios de lenta evolução parece ser a utopia de um líder poderoso e incorruptível.

vc só se esqueceu de falar do liberal utópico, aquele que jura que o mundo todo está preparado para a liberdade que ele prega.

Anônimo disse...

Você esqueceu de mencionar a utopia da maioria dos frequentadores: a de uma sociedade sem Estado e governada por um sindicato patronal geral que determinaria os preços de tudo e descontaria nos salários dos seus funcionários os bens e serviços a eles fornecidos, utopia esta que alguns empregadores, sobretudo na zona rural, tentam implementar. Ah, a utopia reside na desnecessidade de manter seguranças para vigiar os empregados, pois com o regime vigendo em toda a sociedade, os últimos não poderiam mesmo fugir.

Bruno Leão disse...

Ótimo artigo!

samuel disse...

Marx não responde a pergunta “Quem produz as ferramentas necessárias para a caça e a pesca?. Os Europeus e os Obamistas atuais se encarregam de responder: OS CHINESES! Os Europeus e OBamistas produzem TÍTULOS DA DÍVIDA PÚBLICA para em cima deles viverem a UTOPIA.
(Pobre dos CHINESES NÃO TEM NADA DO QUE A UTOPIA LHES PROMETEU).

Diogo R Santos disse...

O texto é brilhante, isto me fez até lembrar uma questão que sempre existiu e que me fez refletir antes de ler este texto: quem matou mais? os nazistas ou os comunistas? A partir da conclusão de que ambos são regimes que partiram de utopias, quem matou mais deixa de fazer tanta diferença.

E outro ponto importante e que merece ser observado, é como a utopia ambiental pode dar surgimento a uma especie de totalitarismo verde: vale lembrar que já tivemos ações isoladas de "eco-terroristas", além do "abafamento" de opiniões que questionam ou simplesmente não concordam com o aquecimento global.